A ALGARAVIA (adaptação do Grupo 2)



Elenco
Quim Ambrósio (canalizador, fala pelos cotovelos)
Zé Metade (deficiente motor)
Zeca da Carris
Andrade da Lua
Tio Borges
Velha Deolinda
Lurdes
“Ambulância”
Enfermeiro 1
Enfermeiro 2




Raquel Tavares-Meu amor de longe (enquanto se prepara o cenário) 12

Ato I
Estão em cena Quim Ambrósio e a Velha Deolinda. O Quim fala com uma linguagem escanifobética e com muitos gestos. Luz nos personagens, o resto do palco deve às escuras, iluminado unicamente o centro do mesmo. Som de pássaros 13

Cena 1

Quim Ambrósio (falando num dialeto estranho e com grande gesticulação): Vob, fir narli! Kraj a yal vaguoz? (voz off 14 – Ontem à noite estava a cozinhar quando…)

Velha Deolinda (arranjando-se para uma boa hora de palheta): Oh… Estou bem. Mesmo se os meus netos nunca cá vêm, e a minha vida que não anda prá frente...

Quim Ambrósio (cortando-lhe a palavra): Tagaric di picat korpname! Ovi fojinerito vadeo Lujis Flipke di Pedrov! Bilocrafeti tap loginome homin dof tapaclico grafidav... (voz off 15 – Pronto, tábem, tábem, távamos a cozinhar quando o meu primo Luís Filipe da Pedra equivocou-se e… )

Velha Deolinda (interrompendo-o): A minha filha também está grávida! Ai que vida a minha, com o azar que tenho nem vou conhecer a minha neta…

Quim Ambrósio: Tagaric di picat korpname! Ovi fojinerito vadeo Lujis Flipke di Pedrov! Bilocrafeti tap loginome homin dof tapaclico (voz off 16 – Sim, sim, tábem, continuando: e trocou o azeite com a aguardente, transbordou um bocadinho e pronto deixo-vos imaginar o resto da história e adianto já que não é muito agradável…) Luz parcial, só os focos frontais devem estar acesos.  Som do flashback 17 - Alguém passa pelo palco com um cartaz onde está escrito “FLASHBACK”.

As luzes apagam-se.


Ato II
Luz total no palco.  Som de pássaros 18

Cena 1
Zé Metade passeia de carrinho (som da cadeira de roda 19) pela praça e nisto encontra o Quim Ambrósio que logo o aborda.

Quim Ambrósio: ‘Tão amigo Zé, como é que estás? Nem sabes o que me aconteceu!

Zé Metade (suspirando e falando sarcasticamente): Conta-me lá, então! Estou curioso!

Quim Ambrósio: Vi a Dona Isabel e o Senhor Luís Filipe de manhã cedo a beber uma amarelinha na taberna da Marta...

Zé Metade: E o que é que isso tem? (coloca as mãos sobre as rodas do caixote e nesse instante (ruído de telha a bater na cabeça de uma pessoa 20 Quando a telha cai na cabeça do Quim as luzes devem piscar duas vezes para acentuar a pancada. o Quim leva com uma telha na cabeça e cai no chão. Lurdes e Andrade da Lua acorrem).

Lurdes (chegando aflita): O que é que aconteceu?!

Zé Metade (contando): Caiu uma telha do céu, mesmo em cima da cabeça do homem! Não sei de onde ela poderá ter caído…

Andrade da Lua (interrogando-se): Pode ter vindo do telhado da Dona Ana, que está a ser consertado...

Lurdes (cortando-lhe a palavra gritando): Não importa donde veio, chamem mas é uma ambulância em vez de ficar aqui à espera! Até parece que estão a confundir género humano com Manuel Germano.

(Ouve-se a sirene da ambulância 21 Enquanto a ambulância estiver em cena, um foco azul e outro vermelho devem estar a piscar simultaneamente para simular a sirene da ambulância. Estes devem estar apontados para o lado esquerdo do palco )A ambulância chega da direita e leva o Quim Ambrósio (as duas atrizes pegam nas pernas e debaixo dos braços do Quim) que geme enquanto sai do palco.


As luzes apagam-se.


Cena 2
Quim volta do hospital com umas ligaduras à volta da cabeça. Quando entra em palco estão em conversa amena o Tio Borges, o Zeca da Carris, a Lurdes e o Andrade da Lua.

Tio Borges (dando uma palmada no ombro do Quim): Então, Quim, trataram bem de ti nas urgências?

Quim (com um grande sorriso): Yar yar, trolav sat!

Lurdes (aborrecida): Ó Quim, para de te fazer parvo!

Quim (meio irritado por ser insultado sem ter feito nada para isso): Wo nop baka!

Lurdes (falando para o público): Porque é que casei com este?

Andrade (começando a zangar-se): Ó homem, para com isso, pá!

Quim (incrédulo): Cier cigriuef cefvreg dagoifuler faitir?

Lurdes (intrigada): Acho que ele não faz de propósito… (para o público) Às tantas ainda levo um tabefe dele… (falando para o Quim com meiguice) Estás bem? Ainda te dói a cabeça?

Quim (sorrindo-lhe): Nop nop, ilvar tien!

Zé Metade (dirigindo-se a todos menos ao Quim): Acho que ele tem mesmo um problema…  

Andrade da Lua: Vou tentar uma coisa… (voltando-se para o Quim) E os teus rins, como estão os teus rins?

Quim (levando as mãos aos flancos): Nhec, nhec solimador carazac.

Zeca da Carris (piscando o olho ao Quim): Olha que lá em cima está uma gaja a fazer-te olhinhos… ( o Quim de nariz no ar à procura da janela).

Zeca da Carris (vendo o aspeto positivo): Não temos de nos preocupar, pessoal. Pelo menos, agora, ele parece perceber-nos. Luz parcial, só os focos frontais devem estar acesos,luz no flashback. Som do flashback 22 - Alguém passa com um cartaz onde está escrito “Fim do flashback”.

As luzes apagam-se.


Ato III
No beco, o Zeca da Carris, a Velha Deolinda, Andrade da Lua e o Zé Metade tentam encontrar uma solução ao problema de expressão oral do Quim. Luz nos personagens.


Cena 1

Zeca da Carris (rindo desamparado): A Dona Deolinda podia fazer uma das suas bruxarias, como no dia em que bebi um dos seus tais xaropes, lembra-se, e voltei a ter cabelo…

Velha Deolinda (com cara de poucos amigos): Olha lá, que eu não sou bruxa, seu cabruxo! Era um xarope para a tosse. Já não tens tosse, pois não? De que te queixas? Às de cá voltar que eu logo te digo, mal-agradecido!

Zeca da Carris (baixando o tom): Pois… Mas teve consequências irreversíveis, agora sou obrigado a cortar o cabelo todas as manhãs! E ainda por cima este cabelo todo que me cresce não me dá o poder que tinha o Sansão!!!! Lembram-se? Do Sansão? Aquele que foi enfeitiçado pela Dalila quando fomos à Ópera da Bastilha?

Velha Deolinda (convencida): E que seca que foi a Ópera! A única coisa que valeu a pena… Deixem-me pensar… Foi o intervalo!

Andrade da Lua (finge tossir para captar a atenção das personagens e do público som da tosse 23): Kof kof! Voltando ao assunto, o velho João carpinteiro estava a arranjar o telhado da casa da vizinha, e poclop, uma telha deu de si, clak mesmo na cabeça do Quim Ambrósio! Desde essa altura que ele não ficou bem, deixou de falar português, mas vemos que ele nos percebe. Super esquisito, pá? Nunca vi nada assim…

Zeca da Carris (argumentando com prudência): E se o atingíssemos com outra telha igualzinha, no lado oposto da cabeça, para corrigir a pancada do homem?

Velha Deolinda (exemplificando com as mãos a ação referida): Não contem comigo que a minha pontaria já não é o que era!

Andrade da Lua (resmungando): Mas alguém lhe pediu ajuda, ó dona! Lá o Beco pode contar consigo, deves, deves! Assim comassim, vocessemecê só sabe mesmo é fazer xaropes para o cabelo crescer e nem sequer é um cabelo de jeito… (abanando a cabeça e logo em seguida volta a fixar-se no assunto principal) E se pedíssemos ao tio Borges? Quando era novo foi um grande jogador de chinquilho…

Zé Metade (quase saltando para fora do carrinho): Boa ideia, vamos lá buscá-lo!

Velha Deolinda (saindo de cena, falando para os seus botões): Já nem há respeito pela terceira idade…

As luzes apagam-se.

Cena 2
Tio Borges e Andrade da Lua combinam com Zé Metade como fazer para lançar uma segunda telha à cabeça do Quim Ambrósio. O Quim Ambrósio está em palco, do lado esquerdo, com um ar algo perdido, Foco apenas sobre os três homens.

Tio Borges (dando gestualmente e oralmente as instruções): Eu preciso que ele fique quieto para eu fazer pontaria antes de lançar a telha.

Andrade da Lua (coçando o queixo pensativo): Isso vai ser fácil. O Zé Metade vai entreter o Quim Ambrósio, enquanto tu preparas a tua pontaria.

Zé Metade (recuando meio metro): Nem pensar em tal semelhante!! Deves estar a confundir género humano com Manuel Germano! Só podes! Ainda levo eu com a telha, já não tenho pernas para andar, queres que fique sem cabeça para pensar? Aí é que ficava mesmo escanifobético de todo! Ná!

Zeca da Carris (com um ar finório): Preferes ouvir as histórias do Quim Ambrósio naquela linguagem escanifobética como tudo? Não será melhor ouvi-las na mesma mas em português? Português decente! Aquele bom português vernáculo que a malta sempre falou aqui no Beco?

Zé Metade (ameaçando-os): Bom tá bem mas, se for eu a levar com a telha, vocês pagam-mas! (vai ter com o Quim Ambrósio – foco de luz no Quim Ambrósio quando Zé Metade chega junto dele - que se encontra do lado esquerdo do palco, junto à casa, e começa a conversar com ele).


Cena 3

Zé Metade (dirigindo-se ao Quim Ambrósio com algum medo no rosto, não vá o plano correr mal): Ó Quim Ambrósio, Quim Ambrósio! Anda cá, homem, conta lá outra vez como é que foi o teu desastre, pá!

Quim Ambrósio (entusiasmado por alguém querer ouvi-lo e gesticulando com as mãos enquanto fala): Rasneigo saravat miriosha…

Quando a telha cai na cabeça do Quim as luzes devem piscar duas vezes para acentuar a pancada.

Zé Metade (olhando e apontando para o céu): Espera aí, não estás a ouvir nada? (imobilizam-se ambos com a mão atrás da orelha como quem presta atenção ao barulho (som da telha a cair 24) e nesse momento a telha cai na cabeça do Quim Ambrósio que cai desmaiado no chão. Muita gente chega junto dos dois homens).

Velha Deolinda (com tristeza na voz): O que fizeram ao meu Quim Ambrósiozinho?

Zeca da Carris (mistura entre ironia e seriedade): Não foi nada! Só levou com uma telha na cabeça! Nada de grave. Eles consertam isso tudo no banco.

Tio Borges (pensando em voz alta): Talvez um pouco mais à esquerda…

Zé Metade (para o Tio Borges): Chiu!

Velha Deolinda (com um ar interrogativo): No banco?

Zeca da Carris (armando-se em inteligente): Sim, no banco. Não sabe o que é o banco? São as urgências do hospital. Querem ver que vossemecê também já não sabe falar português comó Quim?

Velha Deolinda (calma): Ah, tá bem! Mas voltando ao que interessa: (agora enraivecida) só uma telha na cabeça?!?! Nada de grave?!?! Atão o homem tá aí caidinho no chão que nem se mexe, parece morto e você diz que não é grave? Oh, meu deus, que inconsciente! Chamem a ambulância, seus escanifobéticos, cambada de incompetentes! No meu tempo não era assim... (afasta-se resmungando sozinha)

Zeca da Carris (muito sério): A velha tem razão, ele não acorda. Chamem a ambulância. Já!

Andrade da Lua (muito irritado): Ai é?!? Para ele chamam a ambulância, mas quando eu engoli a Lua, ninguém mexeu um dedo!!! Só me deram azeite e já foi uma sorte! Tá bonito, tá! Grande solidariedade social! Sim senhora! Caramba! Quem tem amigos assim, não precisa de inimigos, pá!

Lurdes (histérica): O que é que aconteceu ao meu Quim?! Parem lá com essas burrices e chamem uma ambulância, suas mulas, seus otários!

Som da ambulância 25- A ambulância chega ao beco. Enquanto a ambulância estiver em cena, um foco azul e outro vermelho devem estar a piscar simultaneamente para simular a sirene da ambulância. Estes devem estar apontados para o lado esquerdo do palco.

Enfermeiro 1 (com firmeza): Afastam-se, deixem-nos levar o ferido!

Lurdes (assustada): Como é que isso pode ter acontecido outra vez… Porquê?!

Enfermeiro 2 (tentando acalmá-la e pousando a mão no ombro de Lurdes): Não se preocupe minha senhora, ele vai ficar vem.

Som da ambulância 26- A ambulância leva o Quim Ambrósio para o hospital.

Apagam-se as luzes.

Cena 4
Pessoas conversando 27
Quim Ambrósio regressa ao beco com um turbante de ligaduras à volta da cabeça e para junto dos outros vizinhos (Andrade da Lua, Zé Metade, Lurdes, Zeca da Carris, Velha Deolinda, Tio Borges) que estão a conversar e logo se lhe dirigem mal o veem.

Todos menos o Quim Ambrósio (preocupados): Djfelufg mehmegh hifgehvobfir nar lir. Kagek vaguoz? (voz off 28 - Quem o viu e quem o vê, bom aspeto sim senhor. Como te sentes, Quim?)

Quim Ambrósio (baralhado): Hã?!? Mas o que é que esta gente está práqui a dizer? Eu é que tive o acidente e eles é que deixaram de falar português?

Andrade da Lua (pondo a mão no ombro do Quim): Sorovov valtiar bnadios dfough djefzou? (voz off 29 - Queres vir tomar uma amarelinha connosco?)

Quim Ambrósio (falando para o Andrade da Lua): O quê? Acho que estás meio a baralhar género humano com Manuel Germano. Vocês deixaram de saber falar português, é o que é…

Andrade da Lua (falando para o público): Não me digam… Está tudo de pernas pró ar! Agora é ele que não percebe nada! Primeiro deixou de saber falar e compreendia a malta. Agora é o contrário, fala de novo o português, mas não percebe patavina do que dizemos…

Quim Ambrósio (desesperado): Ai que vida a minha… Pelo menos o pessoal parece perceber-me, eu é que não entendo nada do que dizem… Mas porque é que estas coisas só me acontecem a mim? (fazendo uma pausa, pensativo) Pensando bem… Nem é só a mim que isto acontece, o Andrade engoliu a Lua e… Deve ser a atmosfera do beco! Só pode… Escanifobético mesmo!

Apaga-se a luz.

Cena 5
(Pássaros 30)
Andrade da Lua, Zé Metade e Zeca da Carris da Carris estão juntos a conversar no meio do beco. Luz total sobre ambos.

Zeca da Carris (pensando ter a melhor ideia de todos os tempos): Olha lá, e se desta vez lhe déssemos uma porrada mesmo ao meio da nuca? Podia ser que resultasse e resolvêssemos de vez este problema...

Zé Metade: Cala-te daí! O melhor é que ninguém saiba o que se passou (olhando para um lado e para o outro, com ar de quem se quer esconder), cá por coisas... não vão eles confundir género humano com Manuel Germano!

Cai o pano. Apagam-se as luzes.

FIM


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